segunda-feira, julho 07, 2003

ANTES DA DENTADA



Olá! À terceira é de vez. Depois da citação de ontem que se lê ali em baixo e da algo bizarra "carta" de apresentação do primeiro dia - ó pró post de quarta- feira - surge mais um cromo na blogo-esfera a falar na primeira pessoa. Espreitados menos de 10% dos blogues em português (de Portugal) o balanço é bom e não enjoa. É certo que andam muitos em questões existênciais mas vê-se pensamento, sente-se paixão. Há vida nesta galáxia!
Caros blogueres muito gosto!
Pela parte que me toca vou espreitar mais um pouco " ver os blogues passar" como se escrevia há dias no Metrobloguitano.
No passado Sábado, a condutora do metrobloguitano falava-nos de "(...) uma miúda que acorda a meio da noite a chorar. Desperta de um pesadelo. Era um pesadelo estranho, como uma espécie de forma oval e vazia que lhe crescia dentro da boca até quase a sufocar.(...)".
A blogo-esfera exorciza?
Deixa-me cá esperimentar...


A DENTADA



O vulto, com clara silhueta humana, entrava no quarto com muitas cautelas, lentamente. “Talvez não me veja. Vou ficar quietinho” pensava nas primeiras vezes, no entanto, invariavelmente, acabava por fazer qualquer roído e, então, a figura ganhava contornos, iluminada por uma misteriosa luz baça, suficiente para mostrar uma carantonha humana de intenções perfeitamente estampadas. Não era um ladrão, era alguém que sabia bem ao que vinha: vinha à procura do menino para lhe fazer mal.
Após breves momentos em que se ocupava de tentar perceber quais os motivos da anunciada malvadez, a pequena cabecinha do menino começava a debitar, a uma velocidade impressionante, planos de fuga ou de combate. Pensava atordoá-lo atirando-lhe com o candeeiro da mesinha de cabeceira, mas sempre que se lembrava deste expediente era já impossível ter sucesso com a figura tão perto. Decidia então que saltaria da cama esquivando pelo lado oposto, passando por debaixo e fugindo depois do quarto, mas... nunca conseguia mais do que virar o pescoço para o lado. Estava completamente paralisado e na garganta restava-lhe apenas uma língua enorme que quase o sufocava.
Apercebida a vulnerabilidade total, era altura do sorriso convencido do tratante que aproveitava para fazer a última aproximação. No momento seguinte, tinha já as suas mãos no pescoço do menino, tal qual como da última vez. A cada nova tentativa, o menino convencia-se que estava a chegar mais perto dos seus limites. Da última vez quando tinha a certeza que já não conseguiria resistir até ao momento estabelecido do climax onírico em que o monstrengo desapareceria, o menino teve muita sorte. Devido a um incêndio nocturno que houve na praceta, foi acordado pela mãe, precisamente no último fôlego. Mas como será hoje?
As mãos apertam, apertam e esperam pelo último estertor, que teima em demorar. Finalmente, a vítima tem uma fortíssima convulsão, dá um peido e queda-se. Vence o mal? Não vence! O menino fingira para poder recuperar o fôlego, imitando uma cena que vira no filme do dia anterior, oferecida providencialmente pela televisão. Mas o malvado apercebe-se, pouco depois, do palpitar incontido da vítima e o seu rosto transfigura-se totalmente; neste momento, o sonho deixa de ser a simples repetição de todos os outros. O rosto da besta é agora raiva, uma raiva que leva as mãos de novo à garganta do menino. E leva, de facto leva, leva com uma valente dentada em um dos dedos! Tamanha a valentia que a dentada é decepadora. A cena é de espanto entre os dois, um absurdo que só os sonhos nos permitem: o menino revela um interesse quase científico pela morfologia do cepo - a secção do dedo mostrava vários anéis em diversas tonalidades de cinzento, com um central muito claro, quase luminoso- o monstrengo passa da estupefacção a um gesto de pânico e depressa desaparece quando é finalmente acossado pelo menino que salta da cama ao pontapé. Termina o sonho e o menino acorda.

Não dormiu mais a pensar em todo este sonho, na história de todos estes sonhos. Vencera o papão ainda que não lhe soubesse sequer esse nome universal, ainda que não se soubesse apenas um entre muitos outros meninos. Talvez este tivesse sido um dos momentos mais importantes da sua vida, um momento que recordará inúmeras vezes nas mais variadas ocasiões, quase sempre com espanto.

Até breve.

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